Laboratório do Tremere: Kult – Divinity Lost

Estamos sob domínio de influências corruptoras que se estendem a cada aspecto das nossas vidas, com controle quase completo de tudo o que conhecemos como mundo, mantendo nossas mentes completamente ocupadas, nossos corpos fatigados e nossas almas exauridas. O objetivo por trás disso tudo é somente um:

Impedir que despertemos desse transe e vejamos a realidade como ela realmente é – Uma prisão para nossa mente.

Se você imagina que logo em seguida lhe será dada a escolha entre a pílula azul ou vermelha, achou errado, meu caro Neo…

ATENÇÃO: se você é sensível a determinados temas como abuso, sexualidade e temas que envolvam profanação, religião e ocultismo pesado, talvez seja interessante considerar não ler esse artigo. Fizemos o possível para atenuar a atmosfera do jogo, mas Kult é realmente um jogo pesado para algumas pessoas. Não há problema algum se esse tema lhe for inquietante e você decidir parar por aqui. Este jogo é classificado para adultos. Recomenda-se cautela ao leitor.

O que acabamos de descrever acima é o cenário base de um jogo que, na realidade, surgiu cerca de 10 anos antes do lançamento de Matrix, o filme. Neste jogo, os personagens são apresentados a um mundo que, semelhantemente ao filme citado, não passa de uma ilusão criada por seres superiores para ceifar nossa centelha divina, manter-nos cativos e alimentarem-se do desespero de nossas almas.

Bem-vindo ao universo de Kult: Divinity Lost! O jogo foi originalmente criado em 1991, na Suécia, teve traduções para diversos idiomas, tais como inglês, francês e italiano e passou por um reboot em sua 4ª Edição, lançada em novembro de 2018.

E por que estamos falando desse jogo? Porque, para alegria dos jogadores brasileiros de Kult, a Editora Buró Brasil anunciou a tradução do jogo para o português em breve.

A Divindade Perdida

Kult: Divinity Lost é um RPG com influências claras do gnosticismo (mais precisamente o cristianismo gnóstico) na qual um ser superior chamado Demiurgo usurpou o direito divino da humanidade e a aprisionou numa falsa realidade, impedindo-a de atingir seu potencial e exercer sua divindade por direito.

Originalmente, toda a humanidade habitava a cidade-natal de Metrópolis, lar de seres de imenso poder. Foi então que, numa tentativa orgulhosa – e movida por outros motivos cósmicos descritos no livro – Demiurgo criou o universo físico e nos enclausurou nos corpos que agora vivemos. Em Metrópolis, Demiurgo construiu sua própria fortaleza para ser adorado por anjos e outros seres daquela dimensão. Para impedir que nossas almas despertassem e descobrissem seu verdadeiro poder, entidades foram encarregadas de controlar o mundo e nos vigiar constantemente. Caso alguém por acaso comece a enxergar a realidade por trás da mentira (bem, já deve imaginar…).

Os Poderes Superiores

A realidade material que nos aprisiona assemelha-se a uma máquina. Esse mecanismo está em constante movimento e articula a tudo o que vemos e sentimos. Em suma, ao criar o mundo material, Demiurgo estabeleceu dez Princípios que regem a realidade, cada qual com seu respectivo Arconte (Archons, em inglês). Absolutamente TUDO o que vemos, fazemos, pensamos ou sentimos é controlado por esses Poderes Superiores através de tais princípios.

Cada Arconte e princípio foi inspirado em pontos específicos da árvore da vida gnóstica e influencia determinado aspecto de nossas vidas. São eles:

Kether (hierarquia), Chokmah (submissão), Binah (comunidade), Chesed (segurança), Geburah (lei), Tiphareth (fascínio), Netzach (vitória), Hod (honra), Yesod (avareza), Malkuth (conformismo/despertar).

No entanto, é virtualmente impossível encontrar quaisquer desses poderes (eu gosto de dizer Postestades) de outra forma que não seja através de suas Manifestações. Portanto, a louca e incessante busca por prazer e satisfação como forma de justificar a própria existência ou mesmo seu apego a bens materiais para conseguir controle e estabilidade diante das incertezas da vida podem ser ambas formas de manifestação dos Princípios criados por Demiurgo e controlados por seus Arcontes (neste exemplo, Tiphareth e Yesod). Todos esses mecanismos da realidade confundem o personagem de tal maneira que ele sequer enxerga o que está acontecendo por trás dessa Ilusão.

O deus-gêmeo

Demiurgo tem um deus-gêmeo-irmão chamado Astaroth, que controla o Inferno e, assim como seu irmão, possui também 10 Princípios controlados por seus Anjos da Morte (as contrapartes dos Arcontes de Demiurgo).

Os Anjos da Morte são: Thaumiel (poder), Chagidiel (abuso), Sathariel (exclusão), Gamichicoth (medo), Golab (tormento), Togarini (compulsão), Hareb-Serap (conflito), Samael (vingança), Gamaliel (luxúria) e Nahemoth (discórdia).

Em Kult, a realidade humana foi fragmentada após Demiurgo aprisioná-la no mundo material (conhecido como Elysium). Para quem já teve sua centelha divina acesa e habitava a vastidão de Metrópolis, fica uma sensação de que “há algo errado” com o mundo. É aí que entram os personagens no jogo. Em Kult, você pode interpretar um personagem cuja realidade despedaçou-se diante de seus olhos e passa a ver a Verdade por trás da Mentira. Aliás, esse é um dos títulos do jogo em edições anteriores (A realidade é uma mentira. A morte é apenas o começo).

Um mundo em ruínas

Por algum motivo, a máquina da realidade começou a apresentar defeito. Demiurgo desapareceu e seu local de adoração em Metrópolis ruiu, deixando somente um infinito abismo no lugar. Desesperados, seus Arcontes não sabiam como lidar com a nova situação que se descortinou e entraram em guerra. Malkuth, que era responsável pela manutenção do conformismo que fazia a humanidade permanecer adormecida, passou a trabalhar para despertá-la (essa é a razão dos dois princípios separados por uma barra). Astaroth foi atrás de seu irmão e, agora, os Anjos da Morte lutam contra os Arcontes de Demiurgo. Essa luta, porém, não é para livrar a humanidade cativa das garras dos Arcontes, mas sim expandir o poder do Inferno sobre ela. Os Anjos da Morte procuram destruir os servos de Demiurgo para se festejarem em cima do poder que pertencia aos humanos, tornando-se eles mesmos seus novos carcereiros.

Com a realidade se fragmentando, os Princípios que governam os desejos e pensamentos das pessoas (e, portanto, dos personagens) se enfraqueceram. Pessoas começaram a despertar desse enorme engano e a romperem as algemas da Ilusão.

Para impedir a humanidade de escapar de sua prisão, seres inimagináveis de outras dimensões passaram a acessar o mundo através de pontos onde o Véu da ilusão se tornou fraco. Quando isso ocorre, a mente de uma pessoa pode vir a despertar ou sua sanidade despedaçar-se em milhares de cacos.

Kult possui outras realidades além do plano material. Uma delas é o Inferno já mencionado, mas também há o Mundo Inferior (uma série de planos subterrâneos que existem “abaixo” de Elysium e que se conecta a outros mundos, como Metrópolis, o Inferno e o próprio Vazio da realidade), além de outros. Gaia, por exemplo, é uma dimensão primal onde a selvageria torna-se lei e os personagens enfrentam fenômenos naturais em escalas inimagináveis. Lá, eles também lutam contra seus próprios instintos. O Limbo, por sua vez, é um reino de sonhos e pesadelos tão terríveis que podem deixar marcas físicas nos corpos de seus visitantes após acordarem.

Todos esses planos recebem um capítulo específico no livro com detalhes sobre como acessar os caminhos que levam a eles, formas de retornar e como esses seres dessas dimensões podem ser atraídos para o personagem quando o véu da realidade começa a rasgar.

Sim, o cenário de Kult é empolgante, denso e muito, muito pesado. Com certeza um prato cheio para quem deseja um jogo de horror capaz de confundir realidade e fantasia. O livro mantém a divisão clássica de seu conteúdo em 3 grandes partes.

  • Livro I: A Mentira – Uma introdução sobre o RPG, o conceito do jogo e sua atmosfera, além de regras para a criação dos Arquétipos (os tipos de personagens jogáveis), características, vantagens e desvantagens, equipamentos e desenvolvimento do personagem. O processo de criação de personagens baseia-se basicamente na escolha de dez atributos e encontram-se numa disposição inspirada na árvore da vida cabalística.
  • Livro II: A Loucura – Traz um capítulo dedicado ao mestre do jogo, orientações sobre como criar histórias e conduzir uma sessão de Kult, uma primeira sessão para quem é novo no gênero e muito mais. Dicas para ganchos dramáticos, como explorar as vantagens, desvantagens e segredos obscuros dos personagens para a criação de uma trama capaz de evocar os aspectos intrínsecos de Kult como um jogo.
  • Livro III: A Verdade – Uma apresentação sobre Elysium e as influências dos outros planos sobre a humanidade além do que há por trás do véu da mentira, detalhando o funcionamento dos mecanismos criados por Demiurgo para aprisionar os personagens, servos dos Arcontes presentes em nosso mundo. Também descreve o processo de “loucura” no qual os personagens rompem com todos os paradigmas impostos pela fachada de realidade e passam a abraçar a loucura que leva à iluminação. É aqui que cada um dos planos (Limbo, Inferno, etc.) são detalhados, além da relação entre o sonho, a morte, e como andar entre ambos.

Muito há a se falar sobre esse cenário, mas passemos a tratar um pouco mais sobre a parte mecânica do jogo.

Está curioso? Pois bem, o Teatro de Mesa não gostaria de deixá-lo sem esse gostinho do sistema, então, vamos lá para um resumo das regras. (Você estava curioso, não estava? Pode confessar.)

Por trás do véu da realidade…

Em conjunto com todo o misticismo e terror que o cenário sustenta, temos o sistema de regras do jogo. Kult faz uso do sistema Powered by the Apocalipse (de Apocalipse World). Uma mudança nas regras em relação à antiga primeira edição, por exemplo, é que você agora lança 2d10 (2 dados de 10 faces) para seus testes principais em vez de um único d20 (dado de 20 faces). Matematicamente, esse procedimento força a curva para valores médios mais próximos de 11 (aqueles que conhecem estatística e probabilidade poderão dizer sobre a curva de Gauss).

Os atributos são: Força de Vontade (manter a calma), Fortitude (suportar ferimentos), Reflexos (evitar ferimentos), Razão (investigar), Percepção (observar uma situação), Intuição (“ler” uma pessoa), Frieza (agir sob pressão), Violência (engajar-se em combate), Carisma (influenciar a outros) e Alma (ver através da Ilusão). Desses 10 atributos, os 3 primeiros são “passivos” e os 7 restantes são “ativos”. Você terá um determinado número de bônus pré-definidos para aplicar nesses atributos, sendo +2, +1 e +0 para atributos passivos e +3, +2, +1, +1, +0, -1 e -2 para ativos. Você escolhe qual atributo receberá cada um desses bônus até os 10 valores serem gastos.

Durante um teste, o Mestre verificará o atributo mais adequado à ação em questão e pedirá que você role 2 dados de 10 faces. Ao valor obtido da soma dos dados, você aplicará os modificadores mencionados acima. Valores acima de 15 significam que você executa exatamente o que pretendia. Entre 10 e 14 você consegue o que queria, mas sob algumas condições, enquanto 9 ou menos significa uma falha. Em Kult, uma falha nunca é somente uma falha…

Por exemplo: Você tenta convencer o policial de que aquela movimentação estranha na casa da esquina é apenas uma festa entre amigos (e não um culto macabro que provavelmente teria problemas com a lei). O mestre pedirá que você role Carisma. Você vê que possui Carisma +2 e, portanto, rola 2d10+2. Um resultado de 15 ou mais quer dizer que o policial acredita na história e vai embora, talvez pensando que é somente um grupo de bagunceiros alcoolizados. Entre 10 e 14 o policial suspeitaria e insistiria em ir ao local até que, finalmente, você percebe que uma pequena soma de dinheiro será suficiente para que ele faça “vista grossa”. Qualquer resultado menor que isso e você estará em problemas nas mãos do policial, podendo ser preso ou tendo de prestar alguns favores a ele futuramente para que ele fique de boca fechada.

O jogo também tem uma série de vantagens e desvantagens que também concederão algumas facilidades para os personagens ou poderão colocá-los em problemas. Essas vantagens podem ser desde contatos e influências poderosas até “dons especiais” adquiridos por ter se tornado um ser desperto.

O jogador também deve escolher um Segredo Obscuro (ou Sombrio) para o personagem. Tais segredos são eventos do passado do personagem que o assombram por toda a história. Ele pode estar ciente disso – e talvez até ocultando dos outros personagens – ou sequer estar consciente do mesmo até que a revelação de tal segredo possa despertá-lo para a Verdade ou acabar com sua sanidade.

Mágica cultista

Em Kult, não são os rituais, itens ou palavras em si que possuem poder, mas sim a habilidade do mágico de alterar a realidade ao despertar da Ilusão. Quando um personagem descobre a Verdade ele consegue, ao menos temporariamente, utilizar os poderes que possuía antes de seu aprisionamento. O poder de alterar a realidade através da força de vontade era natural à humanidade quando esta ainda habitava Metrópolis.

Existem 5 escolas de magia em Kult, cada uma afetando determinadas dimensões.

  • Loucura: quem segue essa escola de magia costuma ter mentes despedaçadas a ponto de seus corpos serem fisicamente afetados. Os efeitos se estendem às dimensões de Elysium, Metrópolis e Mundo Inferior, podendo invocar ou banir demônios entre esses planos. Sacrifícios pessoais e atitudes que não aparentem lógica alguma costumam ser executados.
  • Espaço-Tempo: extremamente raros, esses magos podem alterar a passagem do tempo e as percepções de distância, ângulos e velocidades. Seus rituais costumam envolver modelos matemáticos complexos, máquinas avançadíssimas e padrões arquitetônicos, com extensos cálculos e preparação. Magias de espaço e tempo afetam somente Elysium.
  • Sonhos: Capaz de afetar Elysium e Limbo, magias desse tipo permitem transitar pelos planos dos sonhos, invocar ou banir criaturas do Limbo e até mesmo magos avançados a abrirem portais capazes de transferir fisicamente seus corpos entre Elysium e Limbo.
  • Morte: extremamente perigosa e muito poderosa, a mágica da Morte sempre exige algum sacrifício (na maioria das vezes de um ser vivo, mas também pode ser um sacrifício simbólico, como comida ou a destruição de itens para os quais o personagem “morre simbolicamente”). Capaz de afetar as dimensões do Elysium, Inferno e Mundo Inferior, pode banir demônios, espíritos, ou prendê-los em corpos físicos.
  • Paixão: para manipular as emoções e paixões de humanos e outras criaturas vivas, essa escola de magia costuma ser praticada durante círculos de pornografia, orgias e outros momentos que evoquem o sexo e a luxúria. Desenvolve uma aura sexual atraente e também pode fazer uma alma renascer num novo corpo. As dimensões envolvidas são Elysium e Gaia.

Fora a execução de rituais de magia, os personagens possuem outras duas formas de afetar a realidade ao seu redor – itens mágicos e pactos.

Os itens mágicos são exatamente isso: objetos capazes de realizar feitos que ultrapassam os limites do que chamamos de real ou que minimamente alteram algo em torno dele. Câmeras que fotografam o que “realmente” estava lá no momento da captura (percebeu aquele vulto?) são exemplos de itens mágicos. DVD’s que, ao serem assistidos, apresentem cenas tão perturbadoras que são capazes de transportar o expectador para a cena e experimentar os efeitos do que é exibido são outros exemplos.

Para aqueles que não podem fazer uso da magia ou de itens mágicos resta outro caminho. Quando faz um pacto (o que envolve ritos de invocação e acordos com a entidade em questão) o personagem consegue um favor em troca de estar em débito com tal criatura.

Ao selar um pacto com uma entidade (não qualquer entidade, mas anjos ou seres igualmente antigos e poderosos), o personagem cria um vínculo que irá variar ao longo do tempo. A cada favor concedido, o personagem rola +0. O débito permanece inalterado acima de 15. Entre 10 e 14 o débito aumenta em um. Enquanto que 9 ou menos deixará o débito imediatamente em 5. Quando chega a 5 a entidade dará uma missão que o personagem deverá obrigatoriamente cumprir até, no máximo, a sessão de jogo seguinte. Falhar deixará o débito imediatamente em 0. Uau! Isso é bom, não é mesmo? Até perceber que, em breve, seu personagem poderá se ver envolvido num terrível acidente ou mesmo perdendo alguém que tanto amava…

Kult apresenta um cenário realmente apavorante, então não espere uma atmosfera tranquila durante o jogo. A missão principal de seu personagem será sobreviver aos horrores que ele despertou e atraiu quando decidiu olhar para dentro da toca do coelho.

Éh… como disse o velho Morfeu:

Assim como todo mundo, você nasceu em um cativeiro, preso em uma cela que você não pode sentir, provar ou tocar. Uma prisão para sua mente”.

The Matrix, 1999.

Acorde, caro amigo.

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About Wetto

Wellington "Wetto Tremere", formado em letras, escritor e engenheiro.

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