Um conto de RPG: Lágrimas de Sangue

…silêncio…

CRASH!!! Tim, tim, tim, tim, tim…

Mais um espelho se quebra diante de seu pavor. Sim, quantas vezes mais você terá que aguentar isso? Afinal, a dádiva da eternidade pede um preço, sim.

Mas por quê? POR QUÊ?! Por quê para você saiu tão caro, tamanha a insignificância da vida eterna diante de sua dor? Será que não percebem que está tudo errado? Por que chamam
eles de dádiva o que você chama de danação?

Mais uma vez você se encontra aqui, sozinho, num local escuro, sujo e isolado da cidade. Ou seria sociedade a palavra correta? Bem, o que importa é que esse local onde você vive, digo, sobrevive. Lugar o qual as pessoas normais evitariam pisar mesmo com botas bem grossas, este é o local que voce aprendeu a chamar de lar.

Aqui é confortável para você até; na verdade, um encanamento de esgotos que estava sendo expandido na cidade e… bem, agora é meio de ano e as obras não estão em andamento. Talvez você faça aniversário nesse lugar.
A hora de sair chegou; já é noite e agora as criaturas das trevas se erguerão de seus leitos. E você é uma delas. Além disso, uma fome começa a cauterizar-lhe a garganta e você sabe o que é.

Grita.

Seus gritos ecoam pelas paredes voltando-se contra você, como se zombassem de todo seu sofrimento. Cai de joelhos no chão imundo de seu refúgio, põe as mãos no rosto e chora lágrimas de sangue. Momentos depois, você se levanta e sabe que deve partir.

Partir…partir para onde? Em busca de quê?

Sangue.

Sangue é a resposta! O que há pouco o atormentava e aterrorizava, agora é simples: você precisa sobreviver; e pela sobrevivência é permitido tudo, até mesmo… MATAR. Todos precisam matar para sobreviver; até os humanos fazem isso regularmente e de forma tão natural que nem percebem a destruição que causam. Esse raciocínio é suficiente para livrar sua consciência da culpa, e agora, nem parece mais terrível assim.

Ótimo, agora você sai de seu refúgio em busca de alimento para saciar sua fome que, a propósito, é como uma dependência, mas de tal magnitude, que nenhum viciado terminal em qualquer droga irá sentir uma dia.

Nada de diferente para você. A noite lhe pertence agora. A noite perpétua que está sobre sua cabeça. Os mortais são criaturas tão ingênuas que nem lhes passa na cabeça o que os aguarda após o pôr do sol.

Uma presa se aproxima.

Você se esconde atrás de um poste de metal que, normalmente não esconderia nem seu braço, e mesmo assim lhe fornece sombra o suficiente para tornar-lhe indetectável.

Rapaz de 1,69m de altura, cabelos pretos e lisos, pele clara, olhos castanhos e um furo na orelha, sem brinco. Isso é o que você vê a uns 15 metros de distância.

Bem arrumado, talvez esteja vindo da casa de sua noiva, pois está de aliança. Aparenta ter uns 20 anos; um rapaz bonito até.

Ele se aproxima sem nem se dar conta do que o espera. Coitado, talvez ele nem chegue a se casar. Ao se aproximar você pode até sentir suas artérias pulsarem; infelizmente, você passou muitos dias reprimindo seu “animal interior” e seu descontrole fará com que uma vida tão inocente seja exaurida. Mas afinal, lembre-se: todos matam para sobreviver.

Seus olhos brilham na escuridão fitando sua presa se aproximando, quando, finalmente, vocês se encontram. Você salta das sombras numa linda velocidade, sua mão toca a boca do rapaz tapando-a enquanto os olhos dele arregalam-se de horror, tentando gritar sem conseguir. Sem hesitar vira a cabeça do jovem de lado mordendo-lhe o pescoço e provando sua essência.

Aquele gosto tão bom acaricia-lhe a garganta que há pouco tempo parecia estar cauterizada, um sabor que nenhum ser humano conhece: sangue.

Algo que neste momento é tudo para você. Sim, TUDO!

Você, então, começa a sentir um impulso destrutivo dentro de si, e não pode controlá-lo, pois o jovem que há pouco se debatia de dor, agora se encontra imobilizado pelo beijo da morte. Este prazer indescritível o força a tomar mais, e mais, e mais…

A passagem de sangue no pescoço do jovem não é mais suficiente para você e obriga-lhe a abrir uma passagem ainda mais profunda. Pobre vida que teve tão pouco tempo de existência! Agora drenada até a morte.

Você chega a ver a expressão de horror em sua face; mas agora nada mais pode ser feito. Sentado por entre a escuridão você se delicia com o momento de prazer que experienciou, mas aos poucos sua consciência retorna; então, parando por um instante, finalmente se vira dando-se conta da desgraça que você causou.

Rapidamente levanta o rapaz pelo peito, tomando-o em seus braços com uma vontade enorme de fazer duas coisas: uma- a qual você faz imediatamente- é chorar e arrepender-se; a outra é tentar reanimá-lo, trazê-lo de volta. Mas sabe que a forma de fazer isso nunca o traria realmente de volta, só o deixando no mesmo sofrimento que o seu. Portanto, onde quer que ele esteja agora, está melhor do que você.

Ainda com ele em seus braços, você começa a lamber a ferida no pescoço dele e a medida em que ela se fecha você nota o quanto ele se parecia com você no tempo em que podia ver o sol e usar os seus pulmões. Uma leve garoa se inicia agora no meio da noite e você o deixa deitado num local onde o corpo não fique tão a vista.

Derramando uma lágrima de sangue, você lhe pede perdão e beija-o na testa.

O pobre jovem não tinha em vida nem metade dos anos que você tem de sofrimento. No meio da escuridão você desaparece, voltando ao seu “lar” com o peso de sua consciência sobre seu estômago e com a certeza de apenas uma coisa: o tempo passa e rouba cada vez mais sua humanidade. Você estava certo quando pensou que todos matam para sobreviver, mas nem todos matam os de sua própria espécie.

Matando o rapaz você também mata a si mesmo, arrancando aquilo que você já foi um dia. Como foi dito: “Quando você olha para o abismo, o abismo olha para você.

As horas se passarão e o amanhecer o obrigará a se esconder de novo e adormecer. Tente aprender algo disso tudo e não deixe sua humanidade sofrer uma queda interior. Nunca seja por dentro o monstro que se tornou por fora. Pois amanhã e um outro amanhecer, um outro anoitecer. E lembre-se: você terá muitas noites como- e até piores- que esta mas…

…até quando?

CRASH!!! Tim tim tim tim…

Wellington “Tremere” Ricieri

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Wellington "Wetto Tremere", formado em letras, escritor e engenheiro.

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